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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

QUANDO FALO COM DEUS ...

Já foi um denso pinhal. Agora, apenas o esqueleto da terra crua ...
É no recanto do meu escritório – quase um segundo lar – que lanço pela janela um olhar vadio sobre o espreguiçar dos dias. Todos os verões é assim. Na rua não se vê vivalma. Apenas os passos ausentes dos que, na frescura das suas caves, aguardam o declinar do Sol no Moradal, para regressar aos campos e recomeçar o dia de trabalho. Recomeçar, sim, pois é pela madrugada que partem para as hortas, com o chiar característico do rodado das carroças, e o burrito ronceiro que, de orelhas hirtas, fixa as patas no empedrado das ruas, e cumpre o fardo diário de levar o dono na viagem. Depois regressam, ainda o dia vai alto. Agora, que o fim da manhã se aproxima, são horas de almoçar. E é então que parto à desfilada pela estrada em direcção à Pampilhosa da Serra. Lameirinha é o meu destino. São catorze quilómetros de penitência. Pela estrada, em serpentina, subo até ao planalto. O termómetro do carro marca quarenta e dois graus centígrados e sinto-me a abafar naquele deserto, que outrora era coberto de pinheiros e eucaliptos. Porém, o fogo na sua gula desmedida, lambeu quase tudo. Restam agora as serras carecas, e o pó, que me penetra as narinas e torna o ar quase irrespirável. Ao longe, a terra agreste e cor de tijolo, levanta-se em remoinho, como se de um pequeno tornado se tratasse. É o espojinho – assim se escreve - no dizer das gentes cá da Beira Baixa. Como não tenho ar condicionado, abro os vidros do meu velho carro, companheiro de tantas andanças, na esperança de uma aragem refrescante. Pior. Levo com uma vaga de calor na cara que me seca a garganta. O suor acode-me ao queixo, e desce-me pelo peito. Continuo a minha caminhada por aquele deserto. Passa um tractor por mim. O homem leva a mão à pala do boné. Percebo que me está a cumprimentar e, maquinalmente, saúdo-o. Pelo espelho retrovisor, vejo-o afastar-se e fico a pensar para com os meus botões quem seria. Depois, a chegada à Lameirinha. É um pequeno povoado. Na beira da estrada, as casas unem-se umas às outras, como que por instinto de defesa, naquele lugar de solidão. Parecem soldadinhos alinhados na parada. Por uma taberna entro. Ao lado, é a sala onde servem os almoços. No meio do vozear dos clientes, sento-me a um canto. Uma família vai falando um francês que se percebe não ser genuíno. São emigrantes. O pai e a mãe falam alto, o filho e a filha vão ouvindo. O rapaz traz uma tatuagem no braço. A rapariga usa pulseiras e uma espécie de fita de lhe aperta o tornozelo esquerdo. Depois são os operários. Almoçam todos juntos, por entre discussões e gargalhadas. No tecto, uma ventoinha vai gemendo no seu rodar, na expectativa de amenizar a temperatura que se faz sentir. Acabo o almoço e passo de novo obrigatoriamente pela taberna. É então que o Adelino me vê. De baixa estatura, falta-lhe uma mão, rebentada por um foguete de romaria. A sua tez é da cor do vinho e, na sua cara afilada, o que emerge é um proeminente nariz, que lhe ocupa a cara toda. Foi carteiro de profissão. Agora, dedica-se ao amanho das terras com a mulher, e a cuidar dos netos. Oferece-me uma bebida que rejeito. Explico-lhe que não posso beber, porque de novo tenho que me fazer à estrada. Cá fora, está sentado o Carlos. Alto e com um bigode que lhe tapa todo o lábio superior, cumprimenta-me educadamente. Não é primeira vez que o trago para o Salgueiro. O Carlos tem uma leve disfunção motora e o trejeito de encolher a cabeça e os ombros. Era um homem normal, e o amparo da mãe viúva. Um dia foi para a guerra e voltou assim. Incapaz de trabalhar. E agora é a mãe, já de provecta idade, que é o amparo do filho. E é o cigarro, apenas o cigarro, o seu companheiro de infortúnio. Meto-me então no carro e regresso ao Salgueiro do Campo. De novo navego naquele vácuo espacial. Na descida para o pontão do Chão da Vã, o Seat vai gemendo o seu fado. Dou comigo a pensar se o Destino não me faz uma partida, e não me atira por uma ribanceira abaixo. Mas tenho o conforto e a certeza de que, com a estranheza da minha demora, me irão procurar. Porque este povo é solidário na alegria e na desgraça. Nunca me deixarão só. Acordo então, e espanto com toda a minha energia o pensamento macabro. Mas é também quando tomo consciência da minha fragilidade terrena, e dou comigo a murmurar uma pequena oração. É quando falo com Deus.
Quito Pereira

18 comentários:

  1. Quem escreve assim?
    O Quito...sobre a sua escolha preferencial :
    O relato das vidas das pessoas simples,inteligentes,boas
    que com ele se relacionam.
    Falar com elas... para mim é falar com Deus
    e a garantia que são mesmo tuas amigas e tu delas!!!

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  2. Sinto o calor que o Quito transmite.
    O calor atmosférico e o calor das pessoas.
    Como se fosse eu que tinha feito aquela viagem. Como se, sem lá ter passado, eu conhecesse aquela estrada de cor.
    Aquela "penitência" como ele a classificou.
    Como se conhecesse aquelas figuras que ele descreveu.
    Sensibilizaram-me os tiques daquele homem que andou pela guerra, porque por trás desses trejeitos, por trás de todo ele próprio, haverá certamente o drama inesquecivel de ter passado por ela.
    Deixando a mãe de quem era o amparo.
    E que é quem agora o ampara a ele!

    Ler o Quito é ler Camilo.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Já agora o "ácido" era outro!!!
    Naquele tempo...a mancha verde da Beira Baixa era feita de pinheiros...onde o Prudêncio
    tinha que afiar o ferro, reabastecer a garrafa de ácido, jantar, esticar o corpo num boa sombra e, às vezes, aproveitar para regar uma represa de água, ou tratar de uns mimos.

    A resina do pinheiro, que naqueles tempos era toda aproveitada, seguia das nossas terras, em barris de madeira, para as fábricas de Ortiga, Alferrarede, ou para os lados de Leiria e Pombal, onde era destilada, extraindo-se a aguarrás (essência de terebintina) e o pez louro, que, por sua vez, dava origem a muitas e variadas substâncias que alimentavam as indústrias químicas de perfumes, medicamentos, tintas e vernizes.

    Era uma matéria-prima que servia para equilibrar a economia de muitas casas de lavoura e dava trabalho a muita gente do povo.

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  5. Concordo com o Rui Felício! Ler o Quito é ler Camilo! Mas aquela maneira de observar e descrever o povo que nos rodeia, também me faz lembrar um pouco Jorge Amado!...
    Mas Quito é Quito e ponto final.

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  6. Está na hora de partir. Hoje vou para casa inchado como um pavão, com o seu leque de mil cores. Amigos generosos, compararam-me a Camilo e a Jorge Amado. Eles sabem, e eu sei, que é como comparar um Stradivarius com um assobio das festas do Espirito Santo, nos Olivais. Mas registo a amizade, que, aliás, é recíproca. Mas pelo menos é o alento para quem, diariamente, percorre estas "Terras Sem Fim", romance de Jorge Amado.
    Para TODOS Vós, amigos, vai o meu abraço

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  7. Uma história de Quito,é uma história de Quito!
    Uma história com vida.
    Obrigado.

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  8. O Quito fala com Deus e tem inspiração divina!

    Assim se conclui após a leitura dum texto escrito a três dimensões.

    Ressalta a visão, das situações descritas,o olfacto, sentindo os cheiros dos almoços na taberna,os sentimentos,do próprio e do seu semelhante!

    Inpira-se,não plagia,é tão só o QUITO.


    Mais umas penas para pavoneares...

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  9. O Zé Leitão entusiasmou-se e,também ele nos delicia com a descrição das suas vivências por terras que tão bem conhece!

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  10. ou um Miguel Torga!
    Para quando um livro?

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  11. Depois destes comentários sobre o teu texto, que mais posso eu acrescentar?
    Nada a não ser dizer que dá gosto ler o que escreves!
    Fico com a impressão que foi o destino que te "empurrou" da cidade para o campo precisamente porque tal como grandes escritores da antanho, foram os temas da ruralidade, as estórias de gente simples e sofrida, paixões e dramas que tornaram notáveis alguns dos nossos melhores escritores!
    Já te compararam a Camilo, o que diz muito sobre o que digo!
    Mas tu vais escrevendo, fazendo o teu próprio caminho!
    Palpita-me que vais lá chegar…ou será que já lá chegaste?

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  12. O seu a seu dono!!! As "histórias de gente simples" que citei são do Prof Jose Marques Valente...do qual já publiquei várias! A forma e o "conteudo" da escrita do Quito...logo no começo "Já foi um denso pinhal. Agora, apenas o esqueleto da terra crua ...", lembrou-me o "Prudencio"...resineiro!
    Entretanto mais um delete sem querer. Acontece!!!

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  13. Que bela desrição!Fez-me viajar até Salgueiro do Campo e de lá para a Lameirinha.
    Fez-me lembrar também a minha região(Alvaiazere) que já foi coberta de pinheiros, eucaliptos, carvalhos, oliveiras e azinheiras e hoje são montes carecas. As aldeias estão quase desertas. França foi o principal destino da sua gente.
    Parabéns ao Quito e aos comentadores que nos vão enriquecendo

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  14. Quito,

    Porque conheces a minha "disfunção" horária, não estranharás o meu silêncio.
    Porque li o teu texto com a máxima atenção que a minha pobre cabeça quadrada permite, resolvi fazer um comentário, à minha moda, do tipo da espada de D. Afonso Henriques...
    Chato era quanto baste, penso eu, mas comprido era mesmo. Isso te garanto porque o "sistema" não o aceitou.
    Enfim... estou a ser vitima do boicote do Administrador.

    Mas, porque em situação semelhante o J.Leitão me ensinou um "truque", penso que não perdi aquela pérola. A literatura portuguesa ficaria mais pobre.

    Vamos ver se consigo fazer com que ela te chegue...

    Aquele abraço.
    Carlos Viana.

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  15. Estive a ver os comentários.
    Dei uma boa gargalhada com o teu. Essa do "assobio das Festas do Espírito Santo" é mesmo tua!

    Para quem não sabe, falando sério, transmite bem a tua modéstia. Genuína.

    Carlos Viana.

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  16. Fiz questão de dizer ontem ao Quito e faço questão de o repetir aqui:

    A escrita exaustivamente descritiva das paisagens e das pessoas, a transmissão, através dela, de afectos e sensibilidades, são caracteristicas dos romances de Camilo Castelo Branco que toda a gente reconhece.

    O facto de Camilo ser um vulto consagrado da nossa literatura, não impede que eu encontre na escrita do Quito análogas caracteristicas.

    Foi por isso que eu disse: - "Ler Quito é ler Camilo".

    Mau grado a modéstia do Quito, é isso mesmo que eu penso.

    Que se saiba que não o digo por mera cortesia.
    ( O Quito sabe que o que digo é o que penso...)

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  17. Não posso ficar calada...mesmo sem saber que dizer.
    Ler-te encanta-me. Acompanho-te nas viagens que fazes, conheço as pessoas que descreves, saboreio os petiscos que comes... tal é o realismo com que os descreves.
    Gosto muito do Camilo...mas gosto muito de ti
    Continua.
    Um enorme abraço da

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