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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O DORNIER

As asas da esperança e do desencanto ...
É neste recanto beirão, que vou lavrando a saudade dos meus tempos de inocência. E dos anos trigueiros da minha juventude. De bigode, cabelo longo e calças à “boca – de — sino”, passeei por Coimbra a primavera da minha existência. Não me lembro de ter muito a assinalar. Naquela época recuada, o meu pai era muito autoritário, e achava que a vida era feita a régua e esquadro. Mas não era. Diverti-me o que pude e o que me era permitido. Até ao dia em que abandonei o meu quarto, e me vi nas Caldas da Rainha, numa camarata com mais cento e cinquenta camaradas de armas. Deram-me uma roupa verde para vestir. Umas calças e umas botas… “… olha que o gajo “calça” o 39 de colarinho…” - disseram. E atiraram-me com uma camisa. Aparei-a com as mãos, para não me bater na cara. E foi logo ali que percebi, como aquele mundo estreito em que vivia, tinha mudado. Os livros que trazia a caminho do Dom João III, foram substituídos por uma metralhadora, e as correrias pelos Loios, passaram a ser na Tornada. Exausto, segui para Tavira. Os treinos endureceram. E a minha revolta também. E um dia, não quero lembrar qual, parti para África. Nunca lá tinha estado. Mas lá cheguei. Não como turista. Mas como soldadinho de lata. Reconheço que entrei pela porta pequena. De espingarda engatilhada e um espinho no coração. Dali a rumar ao leste da Guiné, foi um ápice. Num quadrado de arame farpado vivi. Dia após dia. Noite após noite. Vinte e oito longos meses. E naquele marasmo dos dias iguais, sobressaía o” pôr - do – sol”. Incandescente, o “astro – rei” pousava sobre a bolanha. Era quanto os cânticos africanos se misturavam com a esfinge imponente dos embondeiros. No ar, ficava uma atmosfera de mistério. Ao cair da noite, as vozes esmoreciam. E as noites ficavam iguais aos dias. Uma simbiose de calma e sobressalto. De repente, o dia tornava-se mais claro. Como o zumbido de um mosquito, umas asas de prata sobrevoavam o campo. Eram as asas da esperança. De notícias de Portugal. E da família. Envolto em poeira, o pássaro de ferro e alumínio, aterrava na pista. E nós, de longe, olhávamos para dentro do seu dorso. Fitávamos a nave, desconfiados. Até que um soldado, mais afoito, se aproximava. Expectante, percorria com os olhos a mercadoria, até encontrar o saco cinzento da correspondência. O dedo polegar em riste, virado para cima, era a mímica desejada. Depois o ritual do costume. A alegria e o drama de mãos dadas. Uns, recebiam as notícias naquele papel amarelo, e quase engoliam as letras. Outros, liam com um ar sério e compenetrado. E outros ainda, sorriam com as notícias da singela aldeia. Mas havia sempre os que sobravam. Os que não tinham sido contemplados na roleta dos afectos. Esses, como que envergonhados, deslocavam-se para os seus abrigos, onde, deitados de mãos atrás da nuca e olhos fixos no tecto de cimento armado, viam desabar o mundo. O pequeno avião, esse, liberto das suas obrigações, dava meia volta. E de novo envolto num manto de poeira, e o esbracejar desesperado do capim seco e ondulante, movido ao ritmo das pás do hélice, partia. Aos poucos, diluía-se no horizonte. E, de novo, ficávamos sozinhos. Entregues a nós próprios. E ao Destino. Restava-nos acalentar a esperança dos desafortunados daquele dia. E dizer-lhes que, se calhar, o correio deles se tinha atrasado. Que, na próxima vinda do DORNIER, ele lhes traria duas cartas. E assim vivíamos. Suspensos nesta balança de emoções. Dependentes das asas da esperança. E do desencanto.
Quito Pereira

10 comentários:

  1. Parabéns pela narrativa de uma situação que espelha muito bem o que foi comum a muito de nós!

    Mas, do lado de cá, também conheci um Carteiro que distribuía os nossos "aerogramas" a algumas mães de forma espaçada, para que elas tivessem, diàriamente, notícias dos filhos, em vez da entrega que normalmente recepcionavam à semana.Escusado será dizer que o fazia com o "coração" nas mãos,dado que nesse intervalo de tempo poderia já ter havido algum "azar" e, claro,independentemente de contrariar o "regulamentado" nos serviços postais...Dizia ele que a alegria diária daquelas mães era um bem maior do que a mágoa que sentia ao encarar a tristeza que manifestavam pela falta de notícias.

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  2. Uma passagem da tua vida e de tantos outros...
    Triste e não desejada...
    As notícias desejadas eram uma benção do
    céu quando chegavam...

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  3. Quito!
    Tu sabes bem o que eu sei e penso sobre aquele "pesadelo"!!!!!!? Narrativa brilhante e autêntica.
    Cito o Manuel Bastos:

    "Heroísmo
    Pegue-se num homem ainda novo.
    Macere-se a sua carne e rale-se o seu espírito com uma educação alienante e manipuladora.
    Junte-se em doses iguais: demagogia, religião e romantismo.
    Tempere-se com patriotismo quanto baste.
    Reserve-se a marinar durante alguns meses num quartel ou base militar para apurar do tempero e ganhar a consistência moral maleável típica de soldado.
    Finalmente, leve-se a cozinhar numa guerra em lume alto, para reduzir rapidamente e ficar bem passado.
    Serve-se em cadeira de rodas."
    Abraço

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  4. "Num quadrado de arame farpado vivi"...

    Faltou acescentar: "quase dois anos..."
    Dois anos são uma vida quando se tem vinte anos.
    Lembrei-me que o arame farpado foi inventado na América no fim do séc. XIX.
    Os donos das manadas de gado usaram-no para encurralarem os animais, para que eles não ultrapassassem o perimetro da pastagem.

    Na Guiné, quem o montava era a tropa. Supostamente para conter os guerrilheiros em áreas reservadas.
    Na realidade, porém, essa era uma ilusão. Nós os soldados montavamos as cercas de arame farpado, para nos aprisionarmos a nós próprios...

    Porque quem era livre era a guerrilha.
    Quem estava encarcerado eramos nós...

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  5. Caro Rui
    Transcrevo: " Num quadrado de arame farpado vivi. Dia após dia. Noite após noite. Vinte e oito longos meses."
    Foram mais de 2 anos !!!
    Não sei se hoje teria resistência psíquica para tal ....

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  6. Aos valentes não faltaram as forças!

    Ler Quito,é "estar lá".
    Até me senti dentro do quadrado...

    O comentário do Carlos tocou-me pela generosidade,pela sensibilidade,pelo amor do carteiro que, correndo um duplo risco,agia com um sentimento de cumplicidade digno dos Homens,com letra maiúscula!

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  7. Amigo Quito,
    É verdade. Retive a frase principal e esqueci-me que disseste o tempo que lá estiveste. Como eu estive dois anos ( menos tempo que tu ), fui influenciado pela minha experiência, que me levaste a viver.
    Desculpa ter transposto a tua para a minha. Mas o culpado és tu que, da forma que escreves, nos fazes viver não a tua mas as nossas próprias experiências.

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  8. Eu que fui militar citadino de bota sempre engraixada e embora tenha sempre acompanhado pela radio e televisão a chamada "Guerra do Ultramar", de enquanto funcionário dos correios me terem passado pelas mãos milhares de "aerogramas" recebidos ou expedidos( um ou outro na recepção era-me pedido:sr Rafael leia-me por favor o que diz aqui o meu filho...,mas só agora lendo este admiravel texto e passados todos estes anos me tenha apercebido ,do que foi essa guerra e do que vós meus amigos por lá passaram!
    também tenho lido alguns relatos de Manuel Barros que o José Leitão tem enviado e que ajudam a perceber e a enquadrar todos os dramas passados nessa guerra1

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  9. Quito,
    Desta vez, não apanhei a boleia no teu automóvel.
    Apanhei a boleia das tuas emoções vividas em circunstâncias que tive a sorte de não ter sido obrigado a viver. E contigo viajei no tempo e contigo vivi momentos emocionantes que não tinha vivido.

    Também conheci a Dornier - vá-se lá saber porquê, por cá era no feminino que a tratavamos - que me abasteceu de comida e correio durante quinze dias.
    Foi no pinhal de Azambuja, num simulacro de cenário de guerra.
    Foi um simulacro... foram quinze dias...e, ainda assim, não foi agradável.
    Por isso, e não só por isso, deixo aqui o meu enorme respeito por todos aqueles que tiveram que viver a guerra a sério.

    Penso que somos, de facto, um povo muito especial. Conseguimos, como tu aqui conseguiste, como já vi muitos outros testemunhos, relatar um drama que atingiu a nossa juventude de uma forma quase que alegre, romanceada, como se nada de grave se tivesse passado. Como se não tivesse sido um drama!
    Para todos os que o viveram, ao vivo e a cores, retomo a afirmação do meu grande respeito.

    Já agora, para ti, os meus parabéns pela forma deliciosa com que me transportaste até ao teu quadradinho de arame farpado, meu soldadinho de lata!

    Grande abraço.
    Carlos Viana.

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  10. Mais um artigo com a tua assinatura e sempre agradável de seguir. Quanto à roupa, só um fato-de-macaco me saíu muito grande pois parecia o Charlie Chaplin, só que o troquei. No que respeita ao restante conteúdo, penso que vai muito da forma mental como vivíamos as situações. Também vivi noutro tipo de arame farpado pois foi em 1964/65/66 e todos os que estavam no aerodromo iam a correr ver se tinham correio mas eu não. Raramente tinha e ficava todo contente pois era sinal que em casa ia tudo bem. Não era porque quando me escreviam me enviassem más notícias, mas como me sentia preso à família tinha sempre receio. Quando me diziam que havia um aerograma para mim, até ler, ficava nervoso. Podia ser algum azar. Do DO27 tenho ainda hoje na mente várias estórias para rir que até nem escrevo sobre elas pois não confundo os horrores de uma guerra com política, como já aconteceu noutro lado.

    Um abraço.

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