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terça-feira, 10 de agosto de 2010

EGOISMO





Hoje tive que ir à Baixa.
Não vi nada de novo, mas o facto de lá não passar há muito tempo, tinha-me feito esquecer...
Concluí que a grande vocação do homem é fugir de si mesmo.

Sob a fiada de colunas que rodeiam o Teatro Nacional no Rossio, há um grupo de sem-abrigo. Ali fazem as suas camas de papelão, ali guardam os materiais que recolhem do lixo e ali se reúnem para as parcas refeições. Estão sujos, vestem trapos e encerram nos seus modos uma contradição quase necessária ao cenário urbano, como seu contraponto. Fazem parte da paisagem.

A presença deles aflige-me de maneira peculiar. Representam um ultraje aos meus costumes, à minha educação e ao meu aconchego. Como um espelho às avessas, olhar para eles traz-me lembranças da minha própria imagem. Lembro-me da habitual gravata que levo ao redor do pescoço, o fato e a camisa lavada e passada a ferro, a pasta na mão com documentos criteriosamente guardados. É nesse momento que a frase me vem à cabeça e percebo: a grande vocação do homem é fugir de si próprio. A indumentária, o perfume e a postura são apenas disfarces. São maneiras de ocultar uma natureza que é muitas vezes feia, suja e dolorosa.

Ao passar pelos mendigos, deixo uma moeda na mão espalmada que invade o meu caminho num gesto automatizado e numa lamúria que se repetirão ao longo do dia. No fim daquele braço não há um indivíduo, não há rosto, não há uma identidade. Há apenas uma boca a ser alimentada e um ligeiro intervalo na minha existência. A mão estendida é uma falha no sistema.

Aquela moeda que deixei nas mãos do mendigo não é sinal de bondade, nem de benevolência e nem sequer de compaixão. Ela só serve para acalmar a minha própria consciência, para tentar isentar-me de qualquer responsabilidade. É um álibi contra as acusações de um dedo inquisidor que me fere diante do espelho. Com o esquecimento, aquela moeda que deixo nas mãos do pedinte não existe. Aquela moeda, como tantas outras, é apenas uma ilusão.
Ao entrar no luxuoso escritório para onde me dirigi, esqueci a mágoa que, na rua, me mordeu por uns minutos.

E a vida continua...

Rui Felício

Um comentário:

  1. É verdade menino.
    Que volta é que se tem que dár a isto tudo para alterar esta dura realidade?
    Mudar mentalidades?
    Francamente não sei.
    Bem escrito, tema muito actual.
    Tonito.

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