Maria Carrondo
Este texto, é um aceno de simpatia a alguém que não conheço. Chama-se Nuno Francisco, e é colaborador do “Jornal do Fundão”. Ao longo de muitos anos, tem-me proporcionado momentos de leitura que me preenchem o Tempo e a Alma. O fluir da sua escrita, a sua prosa muitas vezes em tons de poesia, transporta-me a outros lugares, fazendo-me abstrair desta jangada cada vez mais desertificada que se chama Beira Baixa. Aos poucos, os mais novos partiram para outras paragens. Ficam os resistentes. Aqueles que, a golpes de enxada, cavam os sulcos das suas próprias rugas e o Destino, quando a desilusão lhes tomou conta da vida, e o quotidiano não é mais que o fardo diário de sobreviver. Mas há os outros. Os resistentes da palavra. Os que não se calaram nem se calam. Os que, com a força da sua pena e a arte de alinhar as palavras, procuram um mundo mais justo, mais solidário, nesta aventura de viver. Há sempre quem se recuse a ser indiferente. Há sempre quem acredite na transparência das águas límpidas. E há dias, mais uma vez, Nuno Francisco, deu voz ao povo anónimo. À gente humilde. E, neste caso, aos que se recusam a dar-se por vencidos, e, atrás de um balcão, tecem os fios de uma memória remota, como quem fia o linho das suas próprias rocas. Desta vez, de profissões em vias de extinção. O jornalista, apresenta-nos Maria Carrondo. Bem mais de oito décadas de vida, seis das quais atrás dum balcão, numa taberna em Alpedrinha. A idosa recorda os fregueses que já não aparecem, dos “Cafés” que se assenhorearam de tudo. Da ginginha que ainda vai vendendo aos excursionistas que demandam a Serra da Estrela. Mostra, orgulhosa, uma fotografia que tirou com o Embaixador da Polónia, quando o ilustre estadista esteve de visita à Cova da Beira. Fala da sua saúde precária, e de que já não tem força para levantar os garrafões. Transfere o vinho para garrafas pequenas, a forma de ir amenizando o seu calvário. Os vizinhos, esses, não querem ver a velha taberna fechar. Nem ela. António Nunes dos Santos, vive em Alcangosta. É cesteiro. Desde os nove anos de idade que abraça a profissão, que lhe foi legada pelo seu pai. Na sua oficina de paredes frias, que contrasta com o calor abrasador que vem da soleira da porta, o artesão dá vida às aparas de madeira que trabalha com destreza. Há muito que o plástico veio competir com esta arte. Porém, o cesteiro recusa-se a deixar a sua profissão, e, ainda hoje, percorre feiras, vendendo aquilo que constrói com amor. E as pessoas compram. Muitas vezes, apenas para levarem para casa como peça decorativa. Recorda-se da época longínqua do ofício de cesteiro. Eram famílias inteiras, a trabalhar na arte. A voragem do Tempo, encarregou-se de aniquilar a profissão. Mas, António Nunes dos Santos, continua na sua labuta. Muita das obras que produz, são fruto da sua imaginação. Vai continuar a dedicar-se ao seu ganha-pão de sempre. Até ao fim. E nesta peregrinação por gentes da Beira Baixa, entramos numa drogaria de Aldeia do Bispo. Não resisto à prosa de Nuno Francisco que, em jeito de intróito diz: “ … longe, muito longe daqui, rodeado de coisas ao pendurão, está Joaquim Faustino. Tantas coisas para tantas utilidades, nesta loja em Aldeia do Bispo, Penamacor. Tantas caixas e caixinhas. Tantas coisas para desenrascar quem se vir enrascado. Uma drogaria é isso mesmo: para resolver berbicachos domésticos. Nesta pequena aldeia a banhos de sol, é na penumbra da loja que ele se mantém incógnito. Luz discreta lá dentro e sombra generosa à porta, tão suave que nos atrevemos a sentar cá fora num degrau de pedra …”. E de novo retomo o meu cirandar pelo artigo do jornalista, dando voz ao comerciante que diz em jeito de lamento “…antigamente fazia-se muito negócio, mas agora não se faz nada. Eu e a minha mulher via – mo - nos à rasca para atender o pessoal. Vendiamos fechaduras, ferragens, parafusos, tantas coisas. Agora passo aqui dias sem atender ninguém …”. Mas resiste. Naquela drogaria, atrás do balcão, passou cinquenta e oito anos da sua vida. E hoje, mesmo com o desencanto dos dias cinzentos, o Senhor Faustino lá está, a aguardar o cliente que há-de entrar e com quem, talvez, para além de uma caixa de pregos que vai buscar à prateleira, possa conversar de um passado distante, revendo de olhos cerrados e sentado num banco de pedra sob a noite estrelada, o desfiar de um rosário de recordações, como quem arranca ao caminhar do Tempo, pedaços de Sua própria memória…
Quito Pereira
Quito Pereira
Como é bom quedarmo-nos por momentos da correria do dia a dia, para, pela mão serena do Quito, nos imaginarmos nas terras do interior beirão.
ResponderExcluirApetecia-me estar agora em Alpedrinha, na taberna da Maria Carrondo a pedir-lhe para me aviar um copo, pretexto para dois dedos de conversa...
E depois, ir até a Aldeia do Bispo, à drogaria do Faustino, comprar uma caixa de qualquer coisa e desencadear um rosário de perguntas que me bailam na cabeça, neste momento.
Quem sabe se ele ainda se lembraria do sargento Canavarro, do tenente Fiães e do capitão Mota, comandante do quartel, e que viviam naquela aldeia.
Quem sabe se ele ainda tem ideia da professora primária da Aldeia do Bispo que namorei durante algum tempo, quando da minha passagem pelo quartel de Penamacor que hoje já não existe.
Quem sabe se ele se lembra de mim, aspirante alto e magrinho, que ia àquela aldeia ao entardecer, para namorar com ela, ambos sentados no fontanário e bebedouro de animais que ali existia.
Ai Quito... Só tu e a tua forma de escrever para me povoares a mente destas recordações!
E, tal como o Rui Felício muito bem disse, quem sabe se ele ainda se lembra dos pedaços delirantes e eufóricos da minha passagem pelo quartel de cavalaria em Castelo Branco, ainda com o cheiro da revolução do 25 de Abril, com as patrulhas nas zonas raianas e com paixões incandescentes pelos recantos da cidade.
ResponderExcluirO uso da palavra "pedaços" ( sinónimo de "retalhos" ), no comentário feito pelo Rui Pato, e o facto de ele ser médico nascido e licenciado em Coimbra, fez com que eu estabelecesse um paralelismo com Fernando Namora, também ele médico, nascido perto de Coimbra, também ele licenciado na mesma Universidade.
ResponderExcluirVeio-me à memória "Retalhos da Vida de Um Médico", cuja ruralidade em muito se assemleha a este texto do Quito.
Fernando Namora é um nome consagrado nas letras e no seu humanismo.
Rui Pato é-o também, na música e igualmente no seu humanismo.
Gerações diferentes, mas a mesma matriz...
Amigo Rui Felício
ResponderExcluirSe a minha modesta prosa te fez recuar a tempos de antanho, com nostálgicas recordações, quando por aqui andaste a reboque do Destino, fico muito satisfeito.Sinto que âncorei no Tempo. No dizer de Namora, que, como médico, um dia rumou a estas paragens, "qualquer acontecimento preenche uma boa hora de cogitações. É como atirar uma pedra a um lago adormecido..."
Para o Rui Pato, vai, igualmente uma saudação amiga. Curioso o facto de os dois, por aqui terem andado , na vida militar...
Também não sabia que o Rui Pato tinha andado por Castelo Branco. Passámos por lá em tempos diferentes. Espero que ele não se tenha atirado à "minha" professora da Aldeia do Bispo.
ResponderExcluirEsta foi só para desanuviar, desculpem lá...
Não Rui! Essa deve continuar lá pela Aldeia do Bispo...imaculada... sonhando com o seu Alferes.
ResponderExcluirA minha paixão era menina da cidade...
Rui
ResponderExcluirdava dinheiro para te ver vestido de feijão verde, sentado no fontanário da Aldeia do Bispo, com a Senhora Professora em pose de tricana. Depois dizem que os filmes do anos 4O do Alberto Ribeiro eram de ficção ...
Rui Pato
ResponderExcluirJá que estamos numa de filmes, cá vai mais esta do Vasco Santana: COMPREENDI-TE ...
Eu também "compreendi-te" Rui Pato!
ResponderExcluirEnquanto a tua entourage era citadina ( alguma professora liceal, certamente...)os meus horizontes ficavam limitados ao mundo rural.
Actualmente não sei nada dela, mas encontrei-a muitos anos mais tarde como inspectora dos cursos de formação com fundos da CEE.
Apareceu-me para fiscalizar um desses cursos de que eu na altura fui director.
Soube então que tinha casado com um aspirante que passou depois de mim por Penamacor. E que enviuvou porque o marido infelizmente morreu na Guiné...
É curioso que cheguei a conhecê-lo na Guiné sem saber que ele tinha casado com ela. Era o Torcato, um bom homem, simpatiquissimo.
As voltas que o texto do Quito nos faz dar...
Muito bem,todos a fazerem exercícios, de combate à doença do alemão!
ResponderExcluirO escritor de Castelo Branco encheu-se brios e, para além das personagens vividas na estória,ainda juntou mais dois surprendetes protagonistas!
Foi com enorme prazer que li o texto do Quito e de igual modo os comentários dos RUIS!
ResponderExcluirÉ raro haver tantos pontos de contacto no que foi escrito pelo Quito e a leitura que fazemos nos comentários.
De certo modo complementam-se!
Continuem!
Preciso de ler muito e os livros dão trabalho a virar a folha
Se vos compreendi...a vida complicada de pessoas simples contada pelo narrador Quito;
ResponderExcluira vida namoradeira do Rui Felício "atão"
apaixonado pela senhora professora( claro,uma das
pessoas mais importantes da aldeia...);
a vida eufórica e revolucionária do sr. Alferes "o Povo está com o MFA"...
Compreendite e gosteite!!!
Histórias de gente honrada que não vergava, que só tirava o chapéu para entrar na Igreja. Diria mesmo que a linguagem do Romancista é "camiliana" de que já poucos se lembram e aqui reenventada com mestria...pelo Quito.
ResponderExcluirUm à parte: - Agora compreendo porque é que o Rui Felício...foi rótulado de Sedutor!!!!???
Tendo, por meio da tarde, visto este texto do Quito, prometi que aguardaria a hora mais favorável para o saborear como é merecido.
ResponderExcluirCom a sua modéstia conhecida, Quito enaltece "os que com a força da sua pena e a arte de alinhar as palavras procuram um mundo mais justo". Diz isso com a simplicidade que lhe é peculiar sem quase se aperceber que, para quem o lê, está a transmitir a sua própria mensagem.
Ao falar do "seu" cesteiro, realça a importância do artesão que "dá vida às aparas de madeira que trabalha com destreza", desvalorizando a sua própria destreza no uso das suas aparas, que são as suas palavras, com as quais fabrica textos de um invulgar humanismo. O ser humano, e quanto mais simples melhor, é o alvo preferencial das suas incursões literárias. A valorização do Homem, quanto mais simples melhor, é o maior objectivo que este artesão da palavra quer atingir.
E tudo isto, porque "há sempre quem se recuse a ser indiferente".
Parabéns, Quito.
Carlos Viana.
Depois de ter feito o meu comentário li os outros.
ResponderExcluirQue malandragem...
Os dois Ruis são frescos para assar...
Já o sabíamos mas fica confirmado.
Abraço a ambos os dois e a todos os outros amigos.
Olha lá, Rui Felício, como é que se diz "ambos os dois" em latim? Perguntei ao meu explicador mas o burro não me soube dizer. Querem ver que tenho de mudar de mestre?
MUTATIS, MUTANDIS !
Carlos Viana.
Amigo Viana
ResponderExcluirEu fico perplexo com os comentários que teces a meu respeito. Eu apenas alinho as palavras. Saber escrever é outra coisa. Serei, talvez, um "escriturário de afectos".E, neste universo onde me encontro, não é muito difícil encontrar estórias sacrificadas de vida. O mérito do texto não é meu.É do Nuno Francisco. Foi ele que andou por lá e ouviu os queixumes e a resignação de um povo. Eu apenas fiz uma "incursão" pelo extenso artigo, dando-o a conhecer aos amigos à minha maneira.
Amiga Celeste Maria
Escritor no meu caso é com aspas ...
De Castelo Branco sou por obrigação. De Coimbra do coração ...
Abraços
Oh Quito! Gosto qd escreves "eu apenas alinho umas palavras"...pois eu também o tento fazer...e às vezes sai cada "sopa de letras"!!!???
ResponderExcluirAbraço e até domingo...ou férias no Algarve?
Meu amigo...sabes que mais?
ResponderExcluira vida é como um livro que deve ser folheado página por página sem se consultar o índice.
E esta ?
Abraço
O Carlos Viana escreve muito bem, já o sabiamos. Mas desta vez esmerou-se. Aquilo que diz na sua apreciação ao texto do Quito, não podia ser melhor escrito.
ResponderExcluirGostei e muito quando nos dá a imagem do cesteiro que dá vida às aparas de madeira que outros desperdiçariam deitando-as fora.
Tal e qual como o Quito que, de palavras simples que isoladas nada valem, as alinha de tal forma que nos faz acordar e sentir a sua própria sensibilidade.
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Mutatis mutandi,
O "outro" Carlos Viana é o humorista sarcástico ( e agora estudante de latim ) de cuja pena saem, como setas, os disparos certeiros a que não podemos ficar indiferentes.
Caro Viana, "ambos os dois" é um pleonasmo. Devias saber que em latim eles não existem, porque se trata de uma língua perfeita.
DURA VERITAS, SED VERITAS...
( A verdade é dura, mas é a verdade... )
Ou, em linguagem popular:
E contra isto, batatas...
Correcção:
ResponderExcluirMutatis mutandis e não mutatis mutandi como por lapso escrevi.
Amigo Leitão
ResponderExcluirNo Domingo, vou para o Porto. Terei falta de comparência. Mas estás lá tu, mais a tua consorte, que, para nossa satisfação, também já alinha no nosso campeonato gastronómico. Ficam ambos com a responsabilidade de nos representar ...
Amigo Rui
Estamos plenamente de acordo. O Viana tem o dom da escrita. Parece-me boa altura para ele fazer umas incursões pelo palco principal do blogue, escrevendo. Limita-se apenas a comentar e certamente que terá muito mais para dar aos amigos. Conto com a tua ajuda para nós, "ambos os dois", o empurrarmos para a boca da fornalha ...
Abraço a ambos
Já fiz várias tentativas mas o gajo parece que tem medo de se chamuscar...
ResponderExcluirE antes que o Viana e, quem sabe, o Dom Rafael me venham para aqui pedir para pôr em latim a expressão "e contra isto, batatas", já os vou lembrando que a batata é um tubérculo originário do Peru que só chegou à Europa depois dos Descobrimentos.
ResponderExcluirEra portanto desconhecida dos romanos e, por essa razão, não poderia existir na lingua latina...
Com que então, a batata é um tubérculo?!
ResponderExcluirPois será, se Phelicius o diz...
Quanto à fornalha para onde os meus amigos me querem mandar, deixem-me dizer-lhes o seguinte:
Há muito que fui o segundo signatário de uma petição à AR, exigindo o direito de ser embalsamado e não cremado.
Ao contrário de ANTÓNIO FEIO que exigia ser "cromado" - porque estava farto que o tentassem enterrar - eu quero ser embalsamado.
E neste desejo não estou sozinho.
Só espero que o primeiro signatário não tenha abandonado a causa.
Por mim, continuo a recolher assinaturas cá pelo Bairro. Já tenho 11 245. Quando atingir o milhão avanço para a AR.
ALA JACTA EST !
Carlos Viana
Julio César quando atravessou o rio Rubicão, linha limite a partir da qual era proibido aos generais romanos se dirigirem a Roma com os seus exércitos, proferiu a celebre frase "alea jacta est", antevendo a guerra civil que efectivamente veio a suceder entre ele e Pompeu.
ResponderExcluirCarlos Viana, ao retomar aquela frase premonitória, deve estar a deixar-nos o aviso de que uma guerra civil se estabelecerá entre ele e alguém.
E, tudo o indica, por causa da minha petição á AR para legalização do embalsamamento dos cadáveres.
É que ele quer abolir a cremação, substituindo-a pela mumificação. E eu, mais democrático, quero manter a primeira e acrescentar a segunda, deixando ao critério de cada um a livre escolha por uma delas,ou pelo enterro.
Conversa tétrica esta! Mas é das pequenas coisas que surjem as guerras...
HOC OPUS HIC TERRIFICAE PAROLIBUS
HOC OPUS HIC TERRIFICAE PAROLIBUS?
ResponderExcluirPor favor, Felício, traduz lá essa porra. Tenho o meu professor de férias e ...
Tem dó!
Ou me ajudas ou não posso continuar a "armatus cagalhorum".
Quanto à questão séria de tudo isto, estou de acordo contigo. Quem quiser enterrar-se, que se enterre. Quem se quiser cremar, que se creme. Mas façam o favor de nos darem o direito ao nosso querido e desejado embalsamamento!
Carlos Viana.